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Depoimento: Relato de parto e violência obstétrica

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Quem acompanha o blog sabe, por alguns posts que já fiz, que eu queria muito ter o Léo de parto normal e que, com sete meses de gestação, mudei de obstetra porque senti que ele estava me encaminhando para uma cesárea (Depois, vim a descobrir que eu não estava errada. Esse obstetra é bastante conhecido por só fazer partos agendados. Sorte que meu feeling falou mais alto).

Não tenho nada contra cesárea assim como não tenho contra parto natural ou parto humanizado. Sou é a favor de todas as mães terem seus filhos da forma que desejam, da forma que se sentem bem e sem nenhuma forma de coação. Para mim, essa forma ideal era o parto normal, coisa que por sorte, acaso do destino, intuição, birra ou sei eu lá o que, consegui ter ao trocar de obstetra quase aos 47 do segundo tempo.

Mas nem todas as mães escapam de serem levadas para uma cesárea não desejada. Uma dessas mães que viveu essa triste, frustrante, indignante e mais uma série de adjetivos nada bacanas foi a leitora Tati Cotrim.

Ela relatou a sua história no seu blog, o “Papai, tá perdido?”, e permitiu que eu a compartilhasse aqui também, como forma de alerta para outras mulheres que sonham com um parto normal.

E quem, depois de ler esse tocante relato da Tati, quiser saber mais sobre o problema da violência obstétrica no Brasil, pode assistir ao Filme O Renascimento do Parto, que está em cartaz nos cinemas de várias cidades do Brasil. Eu ainda não vi, mas está na minha listinha de “to do” da próxima semana, pois estou mega curiosa e não perco por nada! Para mais informações, inclusive locais em que o filme está em cartaz e horários de exibição, vocês podem acessar o site ou a fanpage do filme.

Relato de parto e violência obstétrica – carta aberta à minha obstetra

Por Tati Cotrim

Olá doutora.

Depois de um ano e quatro meses, venho aqui falar de coisas que têm me incomodado muito. Desde o nascimento do meu filho, tenho sofrido em silêncio, passado noites em claro, esperando meu marido e filho dormirem para poder chorar sem que ninguém veja. Nunca consegui ver o vídeo do nascimento do meu filho. Não passei dos primeiros minutos. É insuportável rever e reviver, de forma tão vívida, tanta dor.

Dor que, infelizmente, a senhora contribuiu de forma decisiva para causar.

Por isso, espero que tenha paciência, pois a carta é longa. E com ela, esclareço, o meu objetivo não é ofender a senhora, mas contar o meu lado. Aquilo que você não sabe, porque, pelo pouco que te conheço, você me parece uma pessoa boa e acho que não faria isso se soubesse o tamanho das feridas que causaria na sua paciente, que, aliás, é uma pessoa e tem sentimentos, vontades, desejos e direitos. Tenho esperança e um tanto de fé que essa carta lhe fará repensar algumas atitudes, gestos e conceitos. Espero que a senhora reveja algumas prioridades no seu trabalho, que é tão importante, e veja suas pacientes de uma forma um pouco mais sensível e humana. Que, talvez, a senhora se lembre dos motivos que a levaram para, dentro de tantas áreas da medicina, optar justamente pela obstetrícia. E que não faça, nunca mais, outras mulheres passarem pelo o que eu passei.

Sei que demorei para falar. E por diversos motivos, posso falar alguns. Primeiro, meu filho é a melhor coisa que me aconteceu. Falar que o parto não foi “incrível”, para mim, era mais ou menos como falar que eu me sentia infeliz com a chegada dele. Demorei para entender que não era bem assim, que o parto não tem nada a ver com o amor pelo meu filho. Também demorei para compreender o que aconteceu. Por que raios eu me sentia tão mal quando pensava no parto do meu filho? Por que eu chorava sempre que pensava nisso? Demorei para lidar com a culpa de não lembrar do parto como o dia mais feliz da minha vida. Outro motivo foi a informação. Isso me ajudou a entender o que aconteceu e o que eu poderia ou não fazer a respeito. E demorei para decidir o que eu queria fazer. E, finalmente, falar sobre o assunto. Ele se tornou um tabu na minha família. Magoei pessoas próximas, outras se magoaram porque não souberam compreeender o que houve – e eu também não expliquei para ninguém, nem para minha mãe que, mesmo sem entender nada, me apoiou incondicionalmente. O que aconteceu teve consequências péssimas sobre mim e se refletiu em toda a minha famíla. Por isso, resolvi escrever. Falar é doloroso demais, isso eu ainda não consigo. Mas conseguirei.

Hoje, é tudo muito claro. Você não disse. Mas me deu os sinais. E eu não vi, pelo contrário. Você nunca incentivou o parto normal. Sempre disse que, se não quisesse marcar o parto, poderia esperar a hora e, só então, ver o que iria acontecer. Hoje eu sei que médicos cesaristas fazem isso. Eu disse muitas, muitas vezes, em todas as consultas, que não queria cesárea de forma nenhuma. Você nunca respondeu. Apenas me olhava e assentia com a cabeça. Eu entendi que aquele aceno era de “sim, claro”. Inocência minha. Hoje sei que era algo mais do tipo “aham”. Quando eu já estava mais perto do parto, você apenas dizia: “Vamos ver, na hora a gente vê”. Sei que engordei um pouco na minha gestação. Mas me lembro muito bem de a senhora ter me dito que isso não era impedimento para o parto normal. O meu filhote encaixou direitinho. Você sabia que nem cogitava uma cesárea. E a senhora também não me deu motivos para pensar a respeito. Por isso quero aproveitar e pedir: seja mais clara com suas pacientes. Se você não pensa em fazer um parto normal exceto caso a criança esteja coroando, diga isso para ela. Ofereça o poder de escolha. O poder que eu não tive.

Era um sábado de feriado. Um feriado lindo, ensolarado. Talvez a senhora desejasse viajar, como tanta gente estava fazendo. Talvez desejasse apenas aproveitar o dia com a família, descansar. Talvez houvesse um almoço. Eu não sei, não tenho ideia. Mas sei que a senhora estava com muita pressa. E, bem, o meu filho não estava com pressa nenhuma de chegar ao mundo. As minhas contrações eram espaçadas. Minha dilatação, pouca. Eu tive a primeira contração às 4:27 da manhã. Não sei te dizer como fiquei feliz. Meu filho estava chegando! Eu fiquei radiante. Não senti medo, preocupação, nada. Apenas felicidade. Fiquei um bom tempo no chuveiro, pois a água quente praticamente sumia com a dor das contrações. Quando o meu marido acordou, eu falei para ele: “Amor, nosso filho está chegando! Estou em trabalho de parto”! Ele quis ir logo para o hospital. Eu achei que podia esperar mais, até porque poderia ser um alarme falso. Me troquei, me arrumei. Era o dia mais feliz e importante da minha vida. Arrumei o cabelo, passei um batom e um rímel. Esperamos até depois das 9h para ir ao hospital. Achei que era um bom espaço de tempo. Bem, no meu caso, não era.

Quando chegamos, por volta das 9:40, ainda esperamos um pouco para dar entrada. No exame de toque, a enfermeira me disse com um tom um pouco frustrado: “Você tem apenas um centímetro de dilatação”. Eu respondi, então, com tranquilidade: “Bem, vai demorar um pouco. Será que devo voltar depois”? Ela ligou para você, que pediu a minha internação. Fui para uma sala de pré-parto. Pedi a sala especial para parto natural. Falaram que só autorizariam com um pedido expresso seu. Resolvi, então, entrar no chuveiro para amenizar as dores das contrações. Nem eram tão fortes. Mas como eu sabia que ficariam bem mais fortes, queria preservar minhas energias e estar bem disposta para quando aumentassem. Pouco tempo depois, a senhora chegou.

A enfermeira veio me avisar que você tinha chegado. E pediu que eu não molhasse os cabelos. Eu não sabia, mas você nem tinha me visto e já havia decidido fazer a cesárea. Não dá para fazer cesárea se a pessoa estiver com os cabelos molhados, por causa do bisturi elétrico, não é? Você não tem ideia de como me arrependo profundamente de não ter enfiado a cabeça embaixo do chuveiro.

Deus sabe o quanto fiquei feliz em lhe ver. Em como imaginei que logo você me mandaria para  a tal sala de parto natural, que nem tive a chance de olhar. Em como imaginei que a senhora me acolheria nesse momento, até porque você me contou que seus filhos nasceram por parto natural. A senhora, então, sabia pelo o que eu estava passando, deduzi. E me lembro bem que, saber que seus filhos nasceram de parto natural foi decisivo para que eu decidisse ter o meu filho com a sua ajuda.

E você me cumprimentou. E nem me examinou, em momento nenhum. Apenas me mediu com o olhar. E jogou, na minha cara, o primeiro balde de água fria. Comentou que a minha barriga estava alta, que o parto demoraria. Eu disse que esperaria, sem problemas. Estava tão feliz. Então, você me falou que eu tinha apenas um centímetro de dilatação. Eu disse que, quando o bebê quisesse sair (mesmo), a dilatação aumentaria, que aguardaria. Eu estava tão feliz. Você me disse que a minha bolsa não tinha rompido. E eu disse que ela poderia romper em breve. Afinal, estava apenas no começo do trabalho de parto. Eu estava tão feliz. Você falou, então que era melhor desistir, pois demoraria muito e no final teria que fazer cesárea, pois pela sua experiência, mães com pouca dilatação e com a barriga tão alta não conseguiam parir. Eu titubeei. E você, então deu o golpe de misericórdia: “Vai demorar, o seu nenê pode fazer cocô e morrer. Ele pode ficar em sofrimento fetal. Tem nenês que morrem por conta disso. Você quer correr o risco”? E o meu mundo desabou.

Eu estava até 5 segundos atrás em trabalho de parto, tudo bem, me sentindo feliz, o bebê mexendo, tudo bem. De repente, apenas em me olhar a senhora me diz que o meu filho pode morrer? No parto? NÃO! CLARO QUE NÃO! QUE TIPO DE MÃE DEIXA O FILHO SOFRER OU MORRER NO PARTO POR CAUSA DE UM CAPRICHO COMO UM PARTO NORMAL? Claro que você não disse que o meu bebê morreria. Apenas que “poderia”.Mas também é claro que você disse isso com a intenção de me apavorar. Claro que deu certo. Como você sabia que daria. Deve fazer isso sempre.

Tudo se fechou. Meu marido se desesperou junto comigo, outro inocente e inexperiente, como eu. Em menos de 5 minutos eu tive que lidar com toda a frustração de não “poder” ter o parto normal que eu desejava tanto, de respeitar o meu corpo, o meu filho e o nascimento dele. Poucas vezes tomei injeção. De repente, tinha que lidar com deitar em uma mesa de cirurgia para ter o meu filho, que poderia morrer!

E a senhora pode me falar que não era para esse desespero todo. Mas a senhora sabe muito bem a vulnerabilidade de uma mulher no momento de parir. É o momento mais frágil e vulnerável da vida de uma mulher. O desejo de que o filho fique bem, a qualquer custo. Os homônios trabalhando a mil. O quanto é difícil raciocinar com tranquilidade (coisa que eu não consegui, claro, por motivos óbvios). E a senhora deveria saber que a mulher deve ser encorajada, acreditar que é capaz; que ela deve se sentir acolhida e protegida; que não deve ser apavorada e ameaçada com a morte do filho se não houver um perigo muito real. O que, claro, fui saber depois, não era o meu caso.

Diante disso, claro, abri as pernas. Ou melhor, fechei. Assenti com a cabeça. Disse que queria o meu marido ao meu lado o tempo todo. Mas ninguém ouviu. Ou melhor, todos ignoraram. Logo em seguida, a enfermeira entrou e levou o meu marido para colocar a roupinha cirúrgica. Não me avisaram que o levariam. Simplesmente o levaram. E ele, acreditando que estranhos fariam o melhor por nós (santa inocência), foi sem questionar. Eu olhei em volta e estava sozinha, sendo levada por um corredor, naquela camisola ridícula, tentando me esconder, visto que a minha barriga era enorme e a camisola não me cobria. Rápido. Fui pisando no chão gelado mesmo, nem pude colocar algo para proteger os pés. Precisava caminhar rápido, mesmo com as contrações. Uma enfermeira chegou a me empurrar para ir mais depressa. E eu tentando me cobrir. E perguntando onde estava o meu marido. Para onde eu estava indo? Sem respostas. Logo entrei em uma sala. Gelada. Clara, muito clara. Não tenho ideia de quantas pessoas tinham ali, não tive chance de ver. Não tive muitas chances de muitas coisas, na verdade. Não tive chance de ser gente. De ser humana. De ser mulher.

Me sentaram em uma maca muito estreita. Não sentia que cabia ali, fiquei com medo de cair. A enfermeira, no auge da “gentileza”, falou para eu parar de ser besta, que ninguém caía. Ela me ajudou a subir as pernas e empurrou a minha cabeça em direção aos meus joelhos. Me mandou ficar imóvel. Eu chamava pelo meu marido. Chorava. Soluçava. Gritava, desesperadamente pelo meu marido.

Me mandaram ficar quieta uma, duas, muitas vezes. Eu chorava e soluçava muito. Estava em pânico. Tentava levantar. Gritava pelo meu marido. Não entendia o que estava acontecendo ou o que queriam fazer. Por que a enfermeira me empurrava daquela maneira, e com tanta força? Foi quando o anestesista, com uma voz muito firme e calma me disse: “Se você não parar agora, engolir esse choro e ficar bem quieta, e vou te sedar. E você vai dormir durante o seu parto. Porque se você fizer um único movimento, e eu errar o local da anestesia, você pode ficar paraplégica. Você escolhe”. Ahhhh, queriam me anestesiar? E por quê não me contaram? E já me ameaçaram de novo? E porque não me contaram que meu marido não poderia entrar comigo?

Eu escolho? Que diabos de escolha é essa: calar a boca ou ser sedada ou ficar paraplégica? Cadê o meu marido? Cadê a minha médica? Gritei, então, mais, muito mais, desesperadamente, pelo meu marido. Estava sendo coagida, ameaçada. Estava sozinha, em pânico e vulnerável, tentando proteger a mim e ao meu nenê. Então a senhora entrou. E eu, na minha santa inocência, achei que a senhora me ajudaria. Que me acalmaria, me daria algum tipo de apoio. E a senhora disse, em um tom firme e gentil: “O seu marido não pode e não vai entrar para esse procedimento. É melhor você ficar quieta, senão vão te dar um sedativo. Fique calada. Pare com o soluço. Pare de chorar. Agora”. E eu entendi, apenas tarde, muito tarde, que a senhora não apenas compactuava com aquela situação. Você estava no comando! Horror dos horrores. Você não me deu chance. Eu confiei em você, que fez com que o sistema me engolisse viva. O choque me calou. E me calaria por 1 ano e 4 meses. Mas não vai mais me calar.

Eu não poderia ficar apagada no parto do meu amado filho. Para vocês, um bebê qualquer, de uma mãe qualquer e nervosinha, que deu trabalho. Para mim, o meu parto, o meu filho. Me calei. Engoli o choro. Abaixei a cabeça, literalmente, na direção dos meu joelhos. Não senti mais nada, apenas a humilhação. Minhas contrações sumiram. Minha barriga sumiu. Minhas pernas também. A enfermeira me deitou. Me amarraram os dois braços. Eu disse que não precisariam me amarrar, já que não poderia mais levantar e correr dali. Eu estava resignada. Rendida. Refém. Ficaria quieta. Disse que queria ao menos segurar o meu bebê, já que, pelo visto, eu não teria chance de amamentar depois do parto, outro desejo meu. A enfermeira falou que não, que me amarraria, pois seria melhor assim. Melhor para quem, cara-pálida? Com certeza, não era para mim.

Meu marido chegou e me viu aos prantos. Não entendeu nada. Eu perguntei onde ele esteve e ele disse que o tinham colocado numa sala fechada para se trocar e o tinham orientado a não sair dali. Ele não ouviu meus gritos. Não ouviu meu chamado, quando mais precisei dele. Ainda dói pensar nisso, mas sei que ele também foi vítima. Senti o cheiro de carne queimada. A minha carne. A senhora, doutora, deve estar acostumada com esse cheiro de churrasco. Eu não estou. Ainda mais quando o churrasco sou eu. Ainda mais quando o churrasco é para retirar o meu filho de mim.

Então comecei a balançar. Morta de medo, naquela maca fininha. Você disse: “olha a bolsa aqui, vou romper. Pronto”. Splash. Balancei, balancei. E a senhora disse: “Você não quer ver o seu filho nascer? Ele é cabeludo”! E o meu marido deu uma espiada por trás do paninho azul. Eu, de mãe que estava feliz e parindo 40 minutos atrás, passei a um objeto amarrado e sem movimento em cima de uma maca. E o meu filho, de criança nascendo, foi reduzido a um bebê sendo retirado de dentro da mãe, às 10:48. Tudo isso aconteceu em menos de uma hora depois que cheguei à famosa maternidade que fica em uma avenida famosa de São Paulo, com uma ótima médica da cidade. Definitivamente, a hora mais longa e traumática da minha vida.

E a senhora me disse várias vezes: “Pare de chorar, menina. A moça está filmando, o filme vai ficar feio. Você vai ficar ridícula com esses olhos borrados”. Lembro que, a senhora ainda teve um breve momento gentil. Pediu para uma enfermeira limpar os meus olhos, que estavam pretos de tanto chorar, afinal, não tem rímel no mundo que aguentaria tantas lágrimas. E pediu que deixassem um lenço com o meu marido para que ele continuasse limpando, pois eu não podia fazer isso – lembra que eu estava amarrada?

Doutora, foram apenas as primeiras de muitas. Eu chorei baldes de lágrimas. Fiquei ridícula um sem número de vezes. Não houveram lenços suficientes. E sabe o tal filme que minha mãe pagou uma fortuna para a moça fazer no momento mais frustrante e surreal da minha vida? Nunca vi. E nem quero ver tão cedo. E nunca dei para ninguém ver, apenas ao meu marido, que também se recusou.

Vocês colocaram o meu filho perto de mim para que eu pudesse vê-lo e para a tal da moça filmar, por alguns segundos. E o levaram embora. Eu não pude segurá-lo. Não pude amamentar. Mal dei um beijo nele. Apenas pude falar: “Meu filho, seja bem vindo. Sou sua mãe, esse é o seu pai. Saiba que te amamos muito e que sempre, sempre vamos te amar. Para sempre”. E o levaram. E meu marido me deu um beijo – e ele não sabe como sou grata por isso – e foi atrás do nenê. E vocês começaram, então a conversar banalidades, enquanto me fechavam, enquanto as lágrimas apenas escorriam. E lembro que você ainda chegou a falar para um outro médico – que eu nem vi a cara – que eu era jornalista, e que sei lá quem da família dele também era jornalista. Que, quem sabe, poderia um dia trabalhar com a tal pessoa. Sério mesmo? Jura? Você estava fazendo uma piada? Não acreditei quando ouvi isso. Nem lembro se respondi algo. Como se isso fosse interessante naquele momento. E tudo se apagou. Vocês me sedaram sem avisar e sem o meu consentimento.

Acordei muitas horas depois, já era quase noite. Ainda estava abalada. Uma enfermeira gentil disse para ninguém vir, que eu estava muito cansada. Era verdade. Eu estava simplesmente sem reação. Uma tia que estava lá me deu apoio, viu que eu não estava bem. Só não sabia, até hoje, o motivo. Ninguém sabia, nem a minha mãe. O meu marido, muito pouco (vocês tiraram ele de perto de mim, lembra?). Todo o restante da minha família ficou magoado. Acharam que eu dei uma desculpa porque não queria a presença deles. Talvez agora eles entendam um pouco melhor. Talvez entendam o quanto eu queria e precisava do sorriso e do apoio deles, mesmo que fosse no dia seguinte. Mesmo que fosse um telefonema, pois nem isso recebi. E porque eu fiquei tão sentida na época. Talvez.

Lembro que depois que voltamos para casa, meu marido, mais feliz que pinto no lixo com o filho, comprou uma cesta de produtos de beleza para a senhora. E levamos na primeira consulta, junto com o nenê. E eu, bem, ainda não havia processado tudo o que tinha acontecido, não entendia, simplesmente. Senão, pode ter certeza, a senhora não teria recebido aquela cesta tão linda. E a senhora me recebeu com um sorriso no rosto e disse: “Olha só, a mãe xiliquenta chegou. Que xilique e que trabalho você deu, menina”! Eu não respondi a isso na época e nem vou responder agora. Acho desnecessário e talvez seria mal-educada com a senhora. Deixemos para lá.

E eu tirei os pontos, voltei quando eles inflamaram e depois nunca mais coloquei os pés no seu consultório. E nunca mais pretendo colocar. Mas quero que a senhora saiba que a cicatriz ainda dói. Que ela é grande e feia. E que a cicatriz na minha alma ainda está aberta e pungente, mas estou cuidando bem para que feche em breve. Essa carta é uma parte do processo. E é aberta para alertar outras futuras mamães e ajudá-las a não passarem pelo o que eu passei. Isso tem nome. Se chama violência obstétrica.

Se não quisesse esperar pelo parto natural, que me desse, ao menos, a opção de seguir com um plantonista. De trocar de maternidade. De ir para uma casa de parto. Sei lá, qualquer coisa. Preferiria mil vezes que você dissesse: “Querida, é feriado, eu vou ficar com a minha família. Se quiser esperar o parto normal, faz com o plantonista. Se não, eu faço a sua cesárea”. Ponto. Simples. Direta. Honesta. Possivelmente eu te perguntaria por que raios então você é obstetra, mas não discutiria e certamente não passaria por toda a dor e pelo trauma que sofri.

A senhora roubou o meu parto. Me traiu. Me colocou em uma arapuca. Me jogou no macabro sistema de retirada de bebês para que eu fosse engolida por ele. Pior, você coordenou tudo. E depois debochou de mim. Riu da minha dor. Me tirou as dores do parto para quê? Para me dar as dores da alma e do pós-operatório? Como você, que teve seus filhos por parto natural tem coragem e se sente no direito de fazer o que fez comigo e, bem possivelmente, com outras mulheres? Como você, que também é mulher? A senhora trataria sua filha, sua sobrinha ou cunhada da mesma forma que me tratou? Duvido muito.

Te peço, encarecidamente, que reflita sobre essa carta. Coloque-se do outro lado. Passe a respeitar mais a mulher, suas convicções e desejos. Ela é uma pessoa. O corpo é dela, o parto é dela, o filho é dela. Afinal, você também é mulher! Você está lá para ajudar e orientar. Para socorrer, caso algo dê errado. As estrelas, me desculpe dizer, são a mãe e o bebê. Esse é o momento único deles. Você, doutora, é uma coadjuvante. Talvez esse sentimento de ser um astro-rei seja um mal dos médicos, especialmente os cirurgiões. Mas, certamente, não pode ser do obstetra. Não é você quem faz o parto. É a mãe. E somos pessoas. Humanos. Indivíduos. Temos nome. O meu, eu sei que você sabe. E o meu filho não é apenas “o nenê”, como você sempre referiu a ele. Ele é o Enzo, desde antes de ser concebido.

E tenho orgulho de dizer que passei por tudo isso e estou aqui. Sobrevivi. Estou me reerguendo. Não quero o carimbo de vítima na testa. Não sou uma coitada, e não quero que me vejam assim. E, pode ter certeza, senhora doutora, eu nunca mais vou passar por isso. O meu próximo filho nascerá da forma mais natural possível. Estou contando o meu lado dessa história para que a senhora repense sua conduta e para que outras futuras mães não passem pelo o que passei.

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